Essa semana no curso de Qualificação de Docentes da Escola de Saúde Pública de PE foi lido esse texto de Clarice Lispector. O interessante é a cada novo momento da minha vida que leio esse texto tenho uma interpretação e acabo usando de maneira distinta. Hoje Dedico esse Texto a minha amiga Karina Menezes, que em vários momentos da vida dela, se depara com o rato ruivo que nos faz questionar a nos mesmos.
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Perdoando Deus
Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída
edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que
na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava
sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui
percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se
intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro
carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho
mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou
igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo
isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de
sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria
acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade
com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e
não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é
Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca
tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um
filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas
livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de
um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo
estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo
grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro
quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não
queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de
cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo
desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa
continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a
conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era
inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente
um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta
de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que
estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que
dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o
admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a
palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era
preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem
poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e
persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me
devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir
nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o
seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando
com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança
fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a
vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um
Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de
criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois
eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais
estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela
janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu
não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois
então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na
intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte,
só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou
contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por
isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
… mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu
tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava
mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que,
somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é
que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar
é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade
ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre
fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu
modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu
amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é
amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque
talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É
porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu
também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando
puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de
minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre
o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o
formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é
pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo
que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto
eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a
distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha
natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas
porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho
de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem
lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de
“mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do
mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que
“Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o
meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já
escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que
jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse.
Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão
mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma
terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me
quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará.
Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
Clarice Lispector em Felicidade Clandestina
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